BBC News Brasil
Camilla Veras Mota
18 de fevereiro de 2022
Amazônia brasileira
São muitas as espécies de plantas e animais da Amazônia com potencial farmacológico – ou seja, que podem ser usadas para fazer novos medicamentos ou cosméticos.
As espécies de sapos da família Dendrobatidae, por exemplo, têm sabidamente peles ricas em moléculas que podem ser aproveitadas para o desenvolvimento de remédios como analgésicos.
O avanço do desmatamento, contudo, pode eliminar esses e outros animais e vegetais do planeta antes que os benefícios possam ser explorados.
No caso específico dos sapos da família Dendrobatidae, uma de suas espécies, a rã flecha (Hyloxalus chlorocraspedus), já perdeu 68% de sua área de ocorrência. Ela é encontrada apenas no município de Porto Walter, no oeste do Acre, região em que a floresta nativa vem perdendo espaço.
Realizado pela consultoria Gondwana e financiado pela União Europeia no âmbito do projeto Eat4Change, o levantamento cruzou os mapas do desmatamento da Amazônia e do Cerrado até 2019 com os mapas de ocorrência de espécies ameaçadas ou que vivem em áreas restritas para entender como a perda da vegetação nativa afeta essa biodiversidade.
Do total, quase todas (484 de 486) perderam parte de seu habitat. Algumas viram suas áreas de ocorrência encolher em mais de 90%, como é o caso da perereca Dendropsophus rhea (93,1%), endêmica do Cerrado, e da serpente Typhlonectes cunhai (93,6%), endêmica da Amazônia.
Os anfíbios foram os mais afetados: a área de distribuição das 107 espécies analisadas reduziu em 43%. Para lagartos e serpentes, o percentual foi de 29%; mamíferos, 27%; e aves, 26%.
Símbolo do Cerrado, o lobo guará (Chrysocyon brachyurus) já perdeu mais da metade do território.
A cuíca (Gracilinanus microtarsus), um marsupial com grande potencial socioeconômico para a agricultura por ser um voraz predador de insetos, reduziu sua distribuição no bioma em cerca de 67% — nível próximo do observado (68%) para o pato-mergulhão (Mergus octosetaceus), ave criticamente ameaçada que usa o bico fino para pescar e é conhecida por só habitar áreas com rios límpidos e cristalinos.
Animais que vivem entre os dois biomas, como o chororó-de-goiás (Cercomacra ferdinandi), foram especialmente afetados. Esse é um pássaro encontrado na bacia do rio Araguaia, com uma área de ocorrência significativa – 107,5 mil km² no Cerrado e 49,7 mil km² na Amazônia -, mas que não foi suficiente para que ele fosse protegido.
De acordo com o estudo, a alteração dos ciclos de inundação do rio Araguaia por barragens e a substituição da vegetação nativa por pasto fizeram desaparecer 74% de sua área de ocorrência na Amazônia e 35% no Cerrado.
Novas fronteiras agropecuárias
A análise apontou que, em ambos os biomas, a vegetação nativa vem dando lugar principalmente a pastagens e plantações de soja. Dados MapBiomas até 2019 apontaram que essas atividades ocupavam 40,9% da área original do Cerrado (33,8% pasto; 7,1% soja), e 14,6% da Amazônia (13,8% pasto; 0,8% soja).
A região mais afetada é o Cerrado, que há décadas vinha perdendo vegetação nativa com o avanço da agropecuária, especialmente a área que compreende os Estados de São Paulo e Goiás.
O desmatamento mais recente, depois dos anos 1990, se estendeu sobre a área conhecida como Matopiba, acrônimo formado pelas siglas dos Estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
A expansão da fronteira agrícola nessa região tem ameaçado, por exemplo, o tatu-bola (Tolypeutes tricinctus), escolhido como mascote da Copa de 2014. Em apenas cinco anos, a espécie assistiu a um aumento de 9% da cultura de soja dentro dos limites de seu habitat.
O levantamento não chegou a fazer distinção entre as áreas em que o desmatamento foi ilegal ou dentro da lei. Nesse sentido, Mariana Napolitano Ferreira, gerente de ciências do WWF-Brasil, ressalta que, ao contrário do bioma Amazônia, o Cerrado tem poucas áreas protegidas.
“Quase 50% da Amazônia são áreas de conservação ou protegidas; no Cerrado esse percentual é de 12%, bem pouco. A área de reserva legal [determinada por lei] para propriedades na Amazônia é de 80%. No Cerrado, cai para 20%, em alguns lugares, para 35%.”
Assim, diz a bióloga, há muita área legal que corre o risco de ser desmatada sem necessidade. Nesse sentido, ela avalia ser necessário pensar em uma “política de planejamento territorial menos agressiva sobre o bioma”.
Além de criar áreas protegidas, é possível pensar em um uso mais inteligente da terra, diz ela, com a expansão da produção agrícola em áreas de pastagens já existentes, mas que sabidamente estão degradadas e/ou são pouco produtivas.
Na Amazônia, o desmatamento está concentrado especialmente na parte sul, com impacto direto sobre animais como o sagui-de-Rondônia (Mico rondoni), espécie apenas encontrada no Estado que lhe dá nome e que responde hoje por uma das porções mais desmatadas do bioma.
Com uma área de ocorrência original de 72 mil km², o mamífero já havia perdido 40% dela até 2014 e, nos 5 anos até 2019, quando houve intensificação do desmatamento, viu desaparecer mais 9%.
Fora da região mais desmatada do bioma, espécies que se concentram em áreas pequenas, como o macaco parauacu (Pithecia cazuzai) e o lagartinho de Anavilhanas (Loxopholis ferreirai) viram a perda de seus habitats se multiplicarem em 10 vezes nos últimos 5 anos.
“A produção de commodities, em especial soja e carne bovina estão entre os maiores vetores de degradação ambiental da atualidade, e da forma como são conduzidos hoje, ameaçam a capacidade do planeta de inclusive produzir alimentos no futuro”, diz o texto da análise.
Efeito cadeia
A perda de área causa desequilíbrios que vão além do impacto individual em cada espécie, ressalta Ferreira. No caso dos predadores, como o próprio lobo-guará ou o gato-do-mato-pequeno (Leopardus guttulus), que já perdeu quase 80% de seu habitat no Cerrado, o impacto se estende por toda a cadeia.
“Essas espécies estão regulando de cima para baixo. Se você tira o predador, pode haver um crescimento exagerado de uma população de roedores, por exemplo.”
Algumas espécies, ela lembra, são importantes para a distribuição de sementes. Sua maior vulnerabilidade, portanto, também tem impacto negativo sobre a biodiversidade da flora.
Em uma escala mais macro, a deterioração do Cerrado e da Amazônia aponta para consequências de longo prazo que transbordam os biomas e podem ter impacto sobre outras regiões do país.
“O problema vai muito além da perda de espécies. A biodiversidade é um indicador de saúde dos ecossistemas”, diz a bióloga.
“A diminuição da biodiversidade está ligada à perda de cobertura vegetal, à degradação dos corpos hídricos. Isso tem impacto na produção agropecuária, nos ciclos de chuva e seca, pode ter como consequência períodos de estiagens mais longos, mais queimadas, desabastecimento. Tudo está interligado.”
O Cerrado se espalha por 11 Estados na região central do país e ocupa cerca de 25% do território. São milhares de espécies de plantas, algumas delas endêmicas, como o baru e o pequizeiro, e centenas de espécies de aves, mamíferos, répteis e anfíbios.
O bioma é também uma das mais importantes fontes de água para o país. É berço de nascentes de rios que compõem bacias hidrográficas como a Amazônica, do São Francisco, do Araguaia/Tocantins e do Paraná/Paraguai.
Já a Amazônia é a floresta tropical mais extensa e rica em espécies do mundo, ocupando mais de 40% do território nacional.
Por conta do fenômeno conhecido como “rios voadores”, a região tem impacto direto sobre o regime de chuvas no Centro-Sul do país. Em paralelo, é considerada fator-chave na luta contra as mudanças climáticas e o aquecimento global.
Isso porque a vasta cobertura vegetal da Amazônia retira grandes quantidades de gás carbônico (CO2) da atmosfera, um dos gases de efeito-estufa. E, ao contrário de florestas localizadas em regiões mais afastadas da linha do Equador, que em alguns casos passam por invernos rigorosos em que as plantas perdem suas folhas, a floresta amazônica, por ser perene, “trabalha” durante o ano inteiro.
Texto original disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60435369