Brasília, 07 de março de 2022
Caro Relator Especial da ONU sobre Substâncias Tóxicas e Direitos Humanos,
Em atenção à chamada de envio de contribuições sobre “Mercúrio, mineração de ouro artesanal e de pequena escala e direitos humanos”, para informe temático a ser apresentado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, enviamos, com nossos respeitosos cumprimentos, informações relevantes sobre a disseminação da atividade garimpeira em terras indígenas, ilegal no Brasil, e a consequente contaminação de mercúrio a que estão expostos os eus habitantes — em particular os Yanomami, Ye’kwana, Kayapó, e Munduruku. Em 2021, lideranças representativas dos três povos se reuniram em uma aliança para expor as ameaças que sofrem em razão do garimpo em suas terras e cobrar por sua proteção e a defesa de seus direitos.
Salientamos que o Estado brasileiro não adotou medidas específicas para proteger a saúde dos povos indígenas da contaminação por mercúrio. Ao contrário, além do histórico estímulo por representantes do poder público, a exploração mineral em terras indígenas tem contado com sistemático apoio por parte do atual governo, que pretende legalizá–la.
Esperamos que as informações contidas na nota em anexo sejam levadas em conta para que o Sr. Relator compreenda a gravidade das violações de direitos humanos a que os indígenas estão suscetíveis, no Brasil, em decorrência do avanço da atividade garimpeira sobre suas terras.
Certos da importância dessa temática para a garantia dos direitos humanos dos povos indígenas, despedimo–nos, salientando a relevância de colocar em pauta, no Conselho de Direitos Humanos da ONU, o impacto negativo do garimpo e da mineração com uso de mercúrio em terras indígenas.
Atenciosamente,

Contribuição à Convocatória geral sobre “Mercúrio, mineração de ouro artesanal e de pequena escala e direitos humanos”
A atividade garimpeira ilegal na Amazônia e a contaminação de mercúrio entre os povos indígenas Kayapó, Yanomami e Munduruku.
1. Adesão do Brasil às normas estabelecidas pela Convenção de Minamata
O Brasil é signatário da Convenção de Minamata desde 2013, tendo ratificado–a em 2018.Pouco avançou a sua implementação, e não houveram atualizações na legislação doméstica relativa à matéria. Em relação aos dispositivos sobre “mineração artesanal e em pequena escala”, não há informações sobre desenvolvimento de qualquer regulação ou política pública para seu cumprimento. O país deixou de apresentar ao secretariado da Convenção de Minamata um Plano de Ação Nacional para a redução ou eliminação do uso e liberação de mercúrio nos garimpos. Enquanto isso, a atividade se expande preocupantemente em toda a Amazônia, e seus impactos sobre a população são cada vez mais graves.
A Convenção de Minamata define, em seu artigo 2, a mineração de ouro artesanal e em pequena escala como “mineração de ouro conduzida por mineradores individuais ou pequenos empreendimentos com investimento de capital e produção limitados”. A noção de que a atividade garimpeira seja equiparável à extração de minerais ‘artesanal’ ou ‘em pequena escala’ pode suscitar interpretações equivocadas quanto à dimensão e ao grau de impactos socioambientais relacionados à atividade, considerando as transformações tecnológicas pelas quais ela passou nas duas últimas décadas e complexidade dos arranjos logísticos, políticos e econômicos que sustentam os garimpos atuais. Além disso, os garimpos estão articulado a outras atividades criminosas, como o tráfico de armas e drogas, além de abusos como a exploração sexual de mulheres e crianças menores e
exploração do trabalho.
Compreendendo esta distinção conceitual entre o garimpo observado no Brasil e atividade mineradora propriamente dita, e levando em conta a finalidade da Convenção de Minamata de promover o controle da substância, entendemos para fins desta contribuição que o fenômeno do garimpo estaria inscrito na categoria de “mineração artesanal e em pequena escala” em razão da larga informalidade da modalidade de extração de minérios
e do emprego disseminado da técnica de amalgamação do mercúrio.
Entretanto, não se deve confundir a atividade garimpeira tal como ocorre no Brasil com experiências análogas, em outros países ou continentes, onde podem assumir um caráter estritamente individual ou familiar.
i. Características gerais da atividade garimpeira na Amazônia
de ouro de origem ilegal.
Nas Terras Indígenas, essa relação é altamente destrutiva, do ponto de vista das comunidades locais. Na Terra Indígena Yanomami (TIY), ataques armados de garimpeiros contra indígenas aterrorizaram por semanas as comunidades da região do Palimiu, no rio Uraricoera. Em Jacareacanga, a sede da Associação das Mulheres Munduruku Wakoborun foi depredada e a aldeia da sua coordenadora incendiada, após a intensificação de um conflito que se estendia desde 2018. Mais recentemente, investigações conduzidas pela Polícia Federal indicam a presença de membros de organizações criminosas atuando em diversos setores da cadeia do garimpo.
Segundo dados da plataforma MapBiomas10, a área ocupada pelo garimpo no Brasil cresceu mais de seis vezes entre 1985 e 2020, saltando de 31 mil hectares em 1985 para um total de 206 mil hectares. Esse crescimento foi acelerado a partir da década de 2010, concentrando–se quase totalmente na Amazônia. Unidades de Conservação e Terras Indígenas (TIs) foram as áreas mais exploradas por garimpo na região – embora, nelas, a atividade seja ilegal. De 2010 para 2020 o garimpo se expandiu 495% em Terras Indígenas, afetando principalmente as TIs Kayapó, Yanomami e Munduruku.
O mercúrio elementar é amplamente utilizado nosgarimpos de toda a Amazônia para facilitar a identificação e separação dos ouro. Uma perícia da Polícia Federal no Tapajós estimou, em 2018, que a atividade garimpeira lançava nesse rio e nos seus afluentes 7 milhões de toneladas de rejeitos por ano.Entretanto, por se tratar de atividade com pouca regulação e muitas vezes ilegal, não existem estatísticas disponíveis sobre a utilização do mercúrio nos garimpos amazônicos.
2. Terras indígenas afetadas por garimpo ilegal e exposição das comunidades ao mercúrio: exemplos dos povos Kayapó, Yanomami e Munduruku
Durante a realização do II Fórum de Lideranças da Terra Indígena Yanomami, levantaram–se queixas de como os peixes, animais importantes para sua alimentação, estão cada vez mais escassos ou “doentes” em consequência do impacto do garimpo nos recursos hídricos. Mulheres yanomami também informaram que mais crianças estão apresentando má–formação congênita, questionando se isso seria consequência do mercúrio despejado pelos garimpeiros nos rios.
Entre os Munduruku que habitam as terras rio acima, um estudo ainda não publicado, a equipe do neurologista Erik Jennings identificou que 99% da população examinada na Terra Indígena Munduruku, alto Tapajós, tinha níveis de mercúrio no sangue acima do limite considerado seguro pela OMS. “Algumas têm até 15 vezes acima do recomendado”, disse o médico em entrevista, explicando, também, que mulheres em idade fértil e crianças representam os casos mais graves e preocupantes.
3. Relação entre garimpo e contaminação por mercúrio: enfraquecimento nas políticas de proteção territorial indígenas
A própria Presidência da República deu declarações públicas de apoio à atividade, mesmo em áreas onde ocorre ilegalmente. Em 2021, por exemplo, o presidente visitou um garimpo ilegal na TI Raposa–Serra do Sol e defendeu a sua regularização à revelia do posicionamento contrário das organizações indígenas locais.
4.Recomendações ao Estado brasileiro
Abordagens que visem mitigar a contaminação de mercúrio somente por meio da regulamentação e investimento técnico na atividade tendem a consolidar violações de direitos fundamentais contrariando parâmetros internacionalmente reconhecidos sobre os direitos dos povos indígenas.Tampouco é provável que os indígenas adotem ações como evitar o consumo de peixes carnívoros em um cenário de crescente diminuição de recursos alimentares frente à expansão garimpeira.
Ao lado de ações de proteção territorial, é essencial que o Estado brasileiro promova a reestruturação do atendimento de saúde especializado aos povos indígenas, promovendo ações específicas para a identificação e prevenção dos efeitos da contaminação de mercúrio que já afeta as populações dos respectivos povos.
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